sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Pancha Makara

Comentando o Kaula Upanishad (texto em construção e sob atualizações periódicas)

Tentarei enfrentar com discernimento esta difícil tarefa de comentar sobre uma Upanishad que, em geral, são textos de elaborada complexidade filosófica. No caso do Kaula Upanishad acrescenta-se o fato dele ser um texto de uso ritualístico usado por uma tradição que historicamente manteve suas práticas distantes de olhares indiscretos.

Peço licença aos Sadhakas iniciados e a linhagem de todos os Gurus para comentar sobre este tema, não para revelar práticas reservadas aos iniciados que foram preparados para realizá-las mas sim para esclarecer um tema sujeito à muita desinformação e interpretações maliciosas que são divulgadas constantemente.

Como comentado, o Kaula Upanishad é um texto ritualístico, ou seja, destinado à ser usado em momentos específicos quando determinados rituais estão sendo realizados. Isto é uma injunção, uma regra ritual, comum à várias situações. Temos por exemplo os mil nomes de Vishnu (Vishnu Sahasranama) que é recitado nas cerimônias fúnebres (vide Garuda Purana), o Argala Stotra que é obrigatoriamente recitado antes da recitação do Chandi Path, o Linga Ashtakam durante o Abhisheka (banho ritual) feito ao Shiva Linga. Este tipo de injunção é comum desde o período Védiko onde o Punyaham Vachanam (declaração de méritos) era recitado no Upanayana Samskara, o rito de recebimento do cordão sagrado.

No caso do Kaula Upanishad o momento ritualístico adequado é durante a realização de um Chakra Puja, que é um procedimento reservado à Sadhakas iniciados e sujeito à várias injunções contrárias à presença de não-iniciados (vide Kularnava Tantra). È neste contexto esotérico que o texto se aplica e fora dele não há sentido algum, ou seja, ele NÃO é um texto para ditar normas de comportamento ou inspirar considerações filosóficas mas sim um texto auxiliar que é usado por alguns Kulas durante o Vandanam – o louvor às qualidades da tradição.

O texto começa com a saudação aos Sadhakas presentes e aos elementos usados no rito em questão:

शनः कौलिकः शनो वारुणी शनः शुद्धिः

शनोऽग्निश्शनः सर्वं समभवत्‌ । १।

śanaḥ kaulikaḥ śano vāruṇī śanaḥ śuddhiḥ

śano'agniśśanaḥ sarvaṁsamabhavat | 1 |

Palavras: śanaḥ - auspicioso ; kaulikaḥ- adepto iniciado no Kaula Tantra ; vāruṇī – epiteto para vinho ; śuddhiḥ - alimentos rituais ; agniḥ - fogo ; sarvaṁ - tudo ; samabhavat – esteja harmonico, pacificado.

Tradução: “Que os iniciados Kaula sejam auspiciosos (estejam em paz), que Varuni seja auspiciosa, que o Suddhi seja auspicioso, que o fogo seja auspicioso, que tudo seja harmônico.” Kaula Upanishad verso 1.

Comentário : Este primeiro verso começa com uma reverência aos Kaulas presentes no Chakra Puja seguida por uma reverência ao vinho e aos acompanhamentos ritualísticos e termina por uma saudação ao fogo do Homa que será realizado ao final. Aqui “Varuni” (esposa do Deus Varuna – Senhor das águas primordiais) é um epíteto carinhoso dado ao vinho e “Shuddhi”refere-se aos 3 Ms que devem ser consumidos no rito. Vale comentar que o inicio“śanaḥ kaulikaḥ śano vāruṇī” apresenta muita similaridade com o primeiro verso do Shanti Path (recitação da Paz) – “Oà çano mitraù çaà varuëaù ...”

नमो ब्रह्मणे नमः पृथिव्यै नमोऽद्भ्यो

नमोऽग्नये नमो वायवे नमो गुरुभ्यः।

namo brahmaṇe namaḥ pṛthivyai namo'dbhyo

namo'gnaye namo vāyave namo gurubhyaḥ |

Palavras:namaḥ - Reverências, saudação ; brahmaṇe –à Brahman ; pṛthivyai – à Prthivi, a Terra ; adbhyo – aos itens comestíveis ; agnaye - à Agni, o fogo ; vāyave - à Vayu, a atmosfera ; gurubhyaḥ- aos Gurus.

Tradução: “Saudação à Brahman, saudação à Terra, saudação aos itens rituais, saudação à chama espiritual, saudação à Vayu, saudação aos Gurus.”

Comentário : Este trecho começa com uma saudação à Brahman – o absoluto imanifesto. Segue com a saudação à Terra, que no rito é feita através da adoração à Adhara Shakti, à Kurma, à Ananta e à Prthivi. Então os Kula Dravyas são purificados e na seqüência a chama da lamparina (que têm um belo Mantra que a compara à luz espiritual - agniH jyothiH ...) e a atmosfera (antariksha) são adoradas e purificadas. Ao final todos os Gurus (Guru, ParamGuru ...) são reverenciados.

त्वमेव प्रत्यक्षं शैवासि।

त्वामेव प्रत्यक्षं तां वदिष्यामि।

tvameva pratyakṣaṁ śaivāsi |

tvāmeva pratyakṣaṁ tāṁ vadiṣyāmi |

Palavras:tvam – você ; eva – verdadeiramente, certamente ; pratyakṣaṁ - forma visível, manifesta ; śaiva – relativo ao Senhor Shiva ; asi – és ; tvām – de você ; tāṁ - d'Ela ; vadiṣyāmi – eu direi, eu falarei.

Tradução: “ Tu és verdadeiramente a forma manifesta do Senhor Shiva. Eu falarei de ti como certamente a manifestação d’Ela. “

Comentário : Aqui o texto identifica todo Sadhaka sentado em Chakra Puja como manifestação viva do Senhor Shiva e de Shakti, e, portanto, estabelece a indivisibilidade intrínseca entre os dois. O Kularnava Tantra reafirma este conceito e explica que a tradição é chamada de “Kaula” pois partilha práticas não-ortodoxas relacionadas à Shiva (Akula – “sem família”) com práticas ortodoxas relacionadas à manutenção da ordem social, estas ligadas à Shakti (Kula – ligada à familia).

ऋतं वदिष्यामि । सत्यं वदिष्यामि।

ṛtaṁ vadiṣyāmi | satyaṁ vadiṣyāmi |

Palavras:ṛtaṁ - sobre a virtude ; vadiṣyāmi– eu falarei ; satyaṁ - sobre a verdade.

Tradução: “ Eu falarei sobre a virtude, eu falarei sobre a verdade. ”

Comentário : ṛtaṁ, a personificação da Virtude no período Védico é evocada aqui. Seu papel na preservação do Universo é semelhante àquele desempenhado pelo Dharma – a ordem universal, que quando protegido preserva o mundo e quando abandonado deixa os seres à mercê da destruição. A verdade (Satya) é filha do Dharma. O MahaNirvana Tantra em seu capitulo IV faz um louvor à verdade e à sinceridade como únicas vias de realização espiritual neste Kali Yuga onde a dissimulação e a falsidade imperam. Onde há fingimento não há Siddhi.

तन्मामवतु । तद्वक्तारमवतु।

अवतु माम्‌ । अवतु वक्तारम्‌।

ॐ शान्तिः शान्तिः शान्तिः।

tanmāmavatu | tadvaktāramavatu |

avatu mām | avatu vaktāram |

om śāntiḥ śāntiḥ śāntiḥ |

Palavras:tat – ele ; mām – à mim ; avatu –proteja ; vaktāram – ao orador, à aquele que fala .

Tradução: “ Que ele (Brahman) me proteja. Que proteja aquele que fala. Me proteja. Proteja aquele que fala. Que haja Paz, Paz, Paz. “

Comentário : Todo Upanishad se inicia com uma evocação à Paz que é recitada antes do texto. Aqui termina esta evocação do Kaula Upanishad e começa o texto propriamente dito.

अथातो धर्मजिज्ञासा । ज्ञानं बुद्धिश्च।

ज्ञानं मोक्शैककारणम्‌।

athāto dharmajijñāsā | jñānaṁ buddhiśca |

jñānaṁ mokśaikakāraṇam |

Palavras: athātaḥ - agora ; dharma– O Dharma, a virtude ; jijñāsā – prova, a certificação ; jñānaṁ- o conhecimento ; buddhiḥ- o discernimento ; ca – e ; mokśa – a libertação final ; eka – identico, o mesmo que ; kāraṇam– a causa primordial.

Tradução: “Agora a prova do Dharma. O discernimento é conhecimento. O conhecimento de que a Libertação Final é idêntica à Causa Primordial.“

Comentário: A realização interna do conhecimento de Brahman, ou seja, a identificação com a Causa primordial (Brahman) leva à Libertação Final. Bhaskararaya, o grande sábio Tântrico que comentou esta Upanishad, afirma que o conhecimento de Brahman surge através do poder da reflexão sobre o Dharma.

अज्ञानं ज्ञानम्‌।

ajñānaṁ jñānam |

Palavras: ajñānaṁ - o desconhecido, não-conhecimento, ignorância ; jñānam – conhecimento.

Tradução: “O desconhecido torna-se conhecimento.”

Comentário: O verbo implícito neste Sutra é “Bhu” –ser ou tornar-se. No Sânscrito a ausência de verbos na sentença implica na presença do verbo “Bhu”. Portanto o original em Sânscrito diz que aquilo que não é o conhecimento pode ser fonte do conhecimento. Aqui “ajñānaṁ” significa Prakrti – a natureza. Um trecho semelhante é encontrado no Devi Upanishad onde a Deusa afirma: “Eu sou a própria forma de Brahman, à partir de Mim surge a natureza (Prakrti), a alma individual e o Universo” (Devi Upanishad verso 2) complementado por “Eu sou o conhecimento e a falta de conhecimento” (verso 3).

एषः मोक्षः। पञ्च बन्धाः ज्ञानस्वरूपाः।

पिण्डाज्जननम्‌। तत्रैव मोक्षः। एतज्‌ज्ञानम्‌।

eṣaḥ mokṣaḥ| pañca bandhāḥ jñānasvarūpāḥ |

piṇḍājjananam | tatraiva mokṣaḥ | etajjñānam |

Palavras: eṣaḥ - isto ; mokṣaḥ - é libertação final ; pañca bandhāḥ - a corrente com cinco, o conjunto de cinco ; jñānasvarūpāḥ - as próprias formas do conhecimento ; piṇḍāt – à partir do Pinda, das oferendas comestíveis ; jananam - nascimento ; tatra– lá, sob aquelas circunstancias ; iva– semelhante à, tal qual ; etad– aqui, sob estas circunstancias ; jñānam– é conhecimento.

Tradução: “ Isto é Moksha, a libertação final. Os cinco itens rituais são a própria forma do conhecimento. Á partir das oferendas comestíveis há o nascimento. Naquelas circunstancias é como se fosse a libertação final, aqui é conhecimento. “

Comentário : Aqui temos uma explicação das condições de Moksha quando os Sadhakas estão sentados em Chakra Puja. Lá, num ambiente ritual, os cinco itens (Pancha Makara) são a própria forma do conhecimento que fazem de seus usuários os possuidores do conhecimento. Os itens comestíveis são comparados ao piṇḍa, a oferenda que é feita aos antepassados de forma à garantir-lhes bem aventurança nos mundos superiores e um futuro nascimento sob condições auspiciosas. Naquelas condições, ou seja, dentro do Chakra Puja todos estão libertos e trazem a libertação final à seus antepassados. Isto é o conhecimento, a ciência Tantrika.

अन्तः शाक्तः। बहिः शैवः।

लोके वैष्णवः। अयमेवाचारः।

antaḥ śāktaḥ | bahiḥ śaivaḥ |

loke vaiṣṇavaḥ | ayamevācāraḥ |

Palavras: antaḥ- interiormente, no coração ; śāktaḥ- um adorador da Deusa ; bahiḥ- na aparência ; śaivaḥ -um adorador do Senhor Shiva ; loke- no mundo ; vaiṣṇavaḥ - um adorador das várias formas de Vishnu ; ayam – este ; eva – verdadeiramente, certamente ; acāraḥ - caminho espiritual.

Tradução: “ No seu coração um adorador da Deusa, na aparência um Shaiva, no mundo um Vaishnava. Este certamente é o caminho espiritual.“

Comentário : O Kaula Dharma não é focado no proselitismo religioso, não há nele a ansiedade por inúmeras conversões. O mais importante é que os Sadhakas sejam “Adhikari”, ou seja, capacitados para suas disciplinas espirituais, o mais importante é o que está no coração do adepto. Sua aparência pode ser como à de um intenso buscador e, no mundo, ele pode apresentar-se como apenas um devoto tal qual aqueles que priorizam Bhakti, a devoção, em suas práticas. Muitas dos ritos Tantrikos são praticados solitariamente ou em pequenos grupos onde a dedicação dos presentes garante a manifestação de Shakti – o poder espiritual.

आत्मज्ञानान्मोक्शः।

ātmajñānānmokśaḥ |

Palavras: ātma – si-mesmo ; jñānām – o conhecimento ; mokśaḥ - a libertação final.

Tradução: “ O conhecimento de Si-mesmo é a libertação final. ”

Comentário: Muitos acreditam que seus apegos e aversões são a sua verdadeira essência, entretanto para o Tantra este é apenas um aspecto superficial que encobre a verdadeiro ser onde todo o poder, consciência e opulência habitam. Mergulhar as profundezas de seu próprio ser através das disciplinas Tantrikas é o caminho para esta descoberta.

लोकान्न निन्द्यात्‌। इत्यध्यात्मम्‌।

lokānna nindyāt | ityadhyātmam |

Palavras:lokān – os mundos ; na– não ; nindyāt – deveria censurar ou repreender ; iti – pois ;adhyātmam – o supremo espirito, Brahman.

Tradução: “ Não deveria censurar as coisas dos mundos pois (elas) são Brahman. ”

Comentário: Swami Satyananda define o caminho Kaula como: “comportamento de excelência - quando ao sentar-se tranquilo em meditação ou tentar ativamente alcançar algum objetivo, a atitude perante a vida continua a mesma em qualquer circunstância”,desta forma, o adepto Kaula deveria estar acima de seus apegos e aversões e contemplar as coisas do mundo sem almejar os frutos de suas ações.

व्रतं न चरेत्‌।

vrataṁ na caret |

Palavras: vrataṁ - Voto ou austeridade ; na – não ; caret – deveria seguir, sendo o modo Potencial do verbo “Car” – seguir, ir.

Tradução: “(Ele) não deveria seguir votos”.

Comentário: A frase “não siga votos” ou “austeridades”se refere à votos ou austeridades fartamente descritos nos Puranas onde há a obrigatoriedade do jejum. Estes votos são feitos no intuito de obter a realização de algum desejo e, portanto, implicam em apego às coisas deste mundo, o que não é apropriado àqueles que buscam Moksha – a libertação final. O jejum é explicitamente contra-indicado no MahaNirvana Tantra, especialmente aos Sadhakas envolvidos em adoração com Pancha Makara.

न तिष्ठेन्नियमेन।

na tiṣṭhenniyamena |

Palavras: na – não ; tiṣṭhet – deveria permanescer, sendo o Potencial do verbo “Stha” – permanescer ; niyamena– através dos Niyamas, em Niyamas.

Tradução: “(Ele) não deveria permanescer em Niyamas”

Comentário: Neste Sutra o significado mais apropriado seria “não permaneça em Niyamas”, disciplinas cujo item principal é “Saucha”, a limpeza física. Não falamos aqui sobre regras de higiene, que são sempre necessárias, mas sim de pureza ritual onde uma das observâncias é não pronunciar Mantras sem antes fazer a higienização da boca, que atua no plano físico, e realizar o Achamanya, que atua no plano espiritual. Portanto o trecho se refere às noções de pureza ritual onde a limpeza física é uma obrigatoriedade nos rituais. Entretanto este não é o caso no contexto deste rito especifico onde o Kaula Upanishad é recitado.

(ESTE COMENTÀRIO AINDA NÃO ESTÁ TERMINADO)

Que Mãe Kali nos abençoe

Templo de Kali

Rudra Natha

 

Retirado de: www.kaulatantra.com.br/2012/05/comentando-o-kaula-upanishad.html

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